36.

Não há como dizê-lo de outra forma: Estou aborrecido. Até um bocadinho sentido. É que depois da invasão no meu estaminé parece que todos se puseram em fuga e agora não aparece quase ninguém.
Foram-se. Lá para as suas vidinhas, todos ufanos a comemorarem o Natal, não se lembram mais de mim, não se lembrarão de mim quando à mesa engordurarem os mesmos dedos com que escrevem, um pensamento que seja para o Guarda-Livros, olha esta azevia é em honra e à saúde do Guarda-Livros, que coitado, lá está...
Pois estou.
Sózinho.
Eu, a árvore de Natal e o presépio. Mais as luvas sem dedos. Este ano nem cartão de boas festas com música... Sonho com um Natal de neve, bonecos com nariz de cenoura, o regresso a casa e à ceia rica. O Natal até é bonito. Muito colorido, muita fantasia, muito brilho.
Ofereço-me um cigarro, posso tragá-lo de mãos quentinhas, os dedos soltos das luvas que a mulher do patrão me ofereceu.
Tenho pena de mim mesmo. Não há mais ninguém que se condoa da minha pessoa...
Mas deve de haver gente bem pior do que eu, deve sim. Feliz Natal.

35.

Sabem para que me quería a mulher do patrão pertinho dela?

Não, nada disso, suas mentes torcidas!


Quería dar-me o meu presente. Este ano veio mesmo cheia de novidades... Não foram as habituais peúgas, foram umas luvas. Pretas como as de um cangalheiro. Sem dedos, para eu poder folhear os livros à vontade, diz ela, mas que pensou nas minhas artroses (Que alma piedosa esta!), mas olhe que eu não tenho artroses! Ah, não? E gota? Também não. E não lhe adormecem as mãos? Não... Ainda não, Sr Guarda-Livros, mas deixe que a idade não perdoa e daqui a nada me contará! São dores, dores e mais dores! Um verdadeiro calvário! E um panarício? Não, lamento... Pois, logo me dirá! Verrugas? Também não.


Ah! Mas vejo que tem os dedos amarelos!


Quem ? Eu?


Isso é icterícia! Olhe que não Madame... O quê? Oh Senhor Guarda-Livros!!! Não me diga que anda a fumar aqui?! Olhe que se anda vou ter que contar ao meu marido! Ando nada, não fumo nada! Não? Não! Tem a certeza? Absoluta!


Então ponha as luvinhas para eu ver como lhe assentam! Ai que bom! Eu tenho olho para isto! Sabía que era mesmo a sua medida!


Devía de haver uma medida qualquer para este tipo de pessoas. Uma medida que não as deixasse alargar, largar bacoradas e abrir as portas em dia de largada!

34.

Tem estado um frio horrível, não resisti e liguei o aquecedor um bocadinho... Aquilo é fraquito e nem podía ser de outra maneira, que os livros têm de estar a uma temperatura constante para não se danificarem. E também porque não quero que o patrão me venha falar em custos quanto aos consumíveis, algum excesso na conta da electricidade.


Estava eu de rabo espetado para o tal aparelho quando apareceu a mulher do patrão, que fosse buscar os enfeites mais o pinheiro à entrada, que era tudo muito pesado para a frágil e débil saúde dela, que o fazía por mim, que também sou filho de Cristo.


Alapou-se na minha cadeira e aqui o escravo a acartar com aquela merda...


A partir daí foi o inferno. Pior que Dante, que dantes não havía mulheres de patrão com a mania das caridadezinhas!



Agora ponha aqui, puxe de lá, mais para o lado, mais, mais, mais, está bom! Olhe, vendo bem, só um bocadinho para o outro lado... ONDE? Ali! Não está a ver?!



(Eu já a vejo às tiras!)



Depois de me ter esfalfado a empinar a porra da estrela no alto do pinheiro (tinha que ser natural, eu sabía, foi de propósito!) aparece-me com uma novidade...


Oh Sr. Guarda-Livros, este ano vamos fazer um presépio aos pés da árvore de Natal!


Lá me pus de quatro, o musgo, a vaca, o S.José e a Maria, o burro e finalmente o puto.


Mas quando me ía a levantar... CREDO!



Que a mulher estava de perna aberta, toda encalorada por causa do aquecimento, veio-me directo aquele cheiro de... de... sabem, aquele cheiro de... e toda ela se ría, toda corada, ai que jeitinho o Sr.Guarda-Livros tem para isto! Ora chegue aqui mais pertinho...



NÃO!



Devía de haver piedade neste mundo! Devía de haver!

33.

O telefone tocou. Fiquei logo a pensar o que sería... Já estou à espera de tudo, e coisa boa não é...


Era o patrão.


Sim senhor, fique descansado. Concerteza, concerteza. Fico à espera, então. Estou sempre cá, não há problema, é um prazer, uma honra!


E pronto. O costume: a esposa do patrão que vem para fazer as decorações natalícias, que eu esteja preparado para a receber. Claro que estou. Estou sempre de prontidão. Não é esta a minha vida? Estar à espera. Dos outros claro, que por mim ninguém espera.


Eu espero que ela traga um pinheiro artificial... O do ano passado era natural e aquela porcaria secou num instantinho! Eram só agulhas espalhadas por todo o lado e quem teve que fazer a faxina fui eu! Isso e desmontar aquelas luzinhas com aqueles fios embaraçados em tudo, mais as bolas, e aquelas fitas muito brilhantes que me dão cabo da vista!


Ela vem e monta. Depois estou cá eu para desmontar.


Vai ser uma fona. Sempre a chamar-me, a pedir-me para eu pendurar isto e mais aquilo nos lugares mais esquisitos e mais dificeis e mais altos... tudo sempre com aquela frasezinha irritante do Tenha paciência...


MAIS???


Eu sou um santo! A paciência em carne e osso!


Na volta ainda me há-de pedir um cházinho... Eu não sou copeira, sou Guarda-Livros! Não sou decorador, sou Guarda-Livros! E no final, para rematar em beleza: Toma lá um par de peúgas!


Apetecía-me mesmo dizer-lhe a quem ela devía oferecer as peúgas... de nylon!


Devía de haver uma regra no meu código de trabalho que não obrigasse o guarda-livros a ter que levar com a mulher do patrão... Ainda mais com umas pernas gordas que nem um presunto!

32.

Efervescente.
É assim que é esta época.
Depois passa-lhes tudo.

Até os pais natais de chocolate que me costumam trazer me são atirados à cara, lá mais para meados de Janeiro, quando não houver dinheiro e os livritos se amontoarem por aqui sem ninguém lhes pegar.
Queríam que eu fizesse alguma coisa... que falasse deles, que os publicitasse.

Esta gentinha não faz a mais pálida idéia sobre as minhas funções... Acham que a minha obrigação é vender livros.


Quer dizer?!

Eles não fazem por vendê-los e sería aqui o je, o Guarda-Livros a fazer o serviço por eles?!

Juízo, tenham juízo!

Acham que já faço pouco? Querem trocar comigo?

Faz de conta que eu sou o escritor... Ora, pois! Levo a noite a beber café e a fumar umas cigarradas, depois durmo durante o dia, tenho crises existenciais e levo esta vida mansa! Ora, não é tão bom???

Agora vêm vocês para aqui, para o meu lugar!

Levam o dia inteiro a subir e a descer escadotes, escadas, a trepar às prateleiras, a mudar de sexo, a ouvir as acusações de lá de cima sobre uma gaja que tem a mania que escreve poemas, picam o ponto! Isso! Picam o ponto quatro vezes! E comem uma sopita que trago no termus!


QUEREM?


Ah! Não querem!
Pois é!

Devía de haver um dia na vida desta cambada em que fizessem o que eu faço! Só para aprenderem!
... Ele há cada um...