51.

Bateu levemente com os nós dos dedos. Logo aí vi a diferença: Nada de encostar o dedo à campainha e deixar-se estar.


Tinha um compleição clara, rosada, muito fina, olhos cor de avelã, uns lábios ligeiramente abertos e muito cheios que deixavam antever dois dentinhos parecidos com chiclets. Davam-lhe mesmo graça.


Andava perdida, à procura de uma coisa qualquer que nem me lembro mais o que era... Se eu não podía ajudar, que lhe tinham dito que se houvesse alguém que soubesse o que procurava esse alguém sería o Guarda-Livros.


Claro que posso, claro que sei, claro que ajudo, claro que deve estar fatigada e não quererá entrar?


Não se fez rogada: Entrou, alapou-se na minha cadeira e beberricou da minha caneca, depois vá de acender uma pirisca. Eu, meio aparvalhado com tanto à-vontade. Mas a menina era linda e às meninas lindas desculpa-se tudo. Depois... Bem, tenho andado num jejum, é que os livros que têm entrado são todos uns calhamaços virados para a politica e para a crise económica, nem um romancezeco onde tire uma casquinha das personagens e esta menina era um refresco no meio do deserto!


Ficámos à conversa, como as cerejas estão a perceber, e quando demos conta era noite cerrada. Disse que tinha medo de regressar e eu, alma caridosa, disse que a protegía. Ficou combinado: Passaría a noite aqui comigo no estaminé.


E assim foi. Lá nos acomodámos os dois encaixadinhos no meu divã. Pensei cá para comigo, deixa que pagas com o corpinho, e ela deve ter adivinhado pois começou a gemer mal a apertei. Não perdi tempo, foi de costas que o espaço é apertadinho.


Deve de haver uma altura que até uma estrelinha lá no alto se condói e se acende por este aqui, eu pobre Guarda-Livros... Obrigado estrelinha, obrigado!

50.

O big brother está de olho aberto, nada lhe escapa, sabe tudo, até quantas vezes respiro por minuto e quantas vezes vou à casa-de-banho!


Gostava de saber quem foi o cabrão que se foi chibar para o patrão quanto a eu ter escrito aquela meia-dúzia de linhas!!!

Não entendo!

Ninguém tem aparecido aqui dentro, tocam à campainha, abro o postigo, recebo a obra, registo, catalogo-a e arrumo-a na secção respectiva. Ninguém entrou cá para dentro.

Como é que o patrão ficou a saber que uma destas noites (só para passar o tempo, só para ajudar a passar o tempo!) me pus a escrevinhar?! Hein?


Sabem no que deu a gracinha? Sabem?


Fui chamado!


Que ando a tentar ganhar dinheiro à conta do material da casa! A vender a minha imagem para algum editor que possa aí aparecer! Que isto é enriquecimento próprio! Que se vier a ganhar algum vai ter que me descontar no salário!


SALÁRIO???


Ahahaha, Deixa-me rir!


A esmola, quer ele dizer!


Só gostava de saber quem é que deu com a língua nos dentes! Quem!!!

Eu não faço mal a ninguém porque é que me querem tanto mal?!


Deve de haver muita inveja por aí! Deve de haver muita gente que gostaría de estar no meu lugar! Não é? Vá, digam! NÃO É???


Cabrões!

49.

Desconfiei desde o principio. No meu intimo sabía-o. Só não tinha como provar. Até agora... Foi de uma grande estupidez esse deslize... Mas suponho que é por isso que estamos em lados diferentes e sempre será assim. Não é porque estou deste lado que és criminosa, mas são damas como tu e outros rufias que justificam eu estar deste lado... Posso parecer solitário, por vezes até perdido. Mas estou focado e teres aparecido naquela noite de tempestade fez-me ver o óbvio... Achaste que eu sería presa fácil. Querías desviar toda a minha atenção para ti, para o teu decote, as tuas pernas... Devo dizer-te que és um belo pedaço de mulher mas pele alguma da tua laia me faría perder a cabeça. Merda! Acabaram-se-me os cigarros! Ainda por cima és péssima a fazer café. Qualquer novato sabe que as louras que fazem um mau café são sempre culpadas. Pois... Acho que é aqui que nos separamos de vez... A policia está à tua espera do outro lado da porta. E nem penses em pegar na minha pistola. Achas que eu sería tão descuidado ao ponto de a deixar ao teu alcance sem estar descarregada?! So long Blond!



Então?



Que me dizem?



Deve de haver alguém que goste do que acabei de escrever...

48.

E é isto.

Depois de muita agitação, muita acção, nada.


Não se passa nada mesmo.


Até os meus próprios passos se abafam entre as prateleiras e quase sinto que não existo. Os personagens andam todos friorentos e nem se atrevem a deitar o nariz de fora para se meterem comigo.


É isto. Às nove da noite está tudo recolhido.


Fico sózinho comigo mesmo, com os meus pensamentos, as minhas recordações. Às vezes conto histórias a mim próprio, volta e meia lá aparece um personagem que se acerca, escuta, fica junto ao aquecedor, lágrimas nos olhos. Só sei contar histórias tristes. É da minha vida. É a minha vida.


É a vida de um Guarda-Livros contada na 1ª pessoa.


Deve de haver por aí, por esse mundo afora, outros Guarda-Livros que não contem histórias tristes, que tenham alegrias a gritar. E também uma ajudante para os ajudar a suportar tamanha solidão.

47.

Naquele dia pensei que era o fim. O fim do mundo em cuecas. As dela, claro está, muito parecidas com uma fronha de almofada, credo, gigantescas... Só de o lembrar fico com os pêlos em pé!


Sim, que nada mais se põe de pé perante tal terror! A mulher apertou-me, amolgou-me, esfregou-se, despiu-se, gemeu! Dei graças por pertencer à única espécie de mamíferos que não tem osso naquele sitio. Coitado de mim se fosse chimpazé, o único no mundo que tem uma pequena protuberância óssea... Tería sofrido uma fractura quase de certeza!


Fez-me um gancho entre pernas que me sufocou e quando consegui uma réstia de ar, a única coisa que me lembrei de dizer, fraquinho, foi Campainha... A mulher começou aos guinchos, que era o marido (o meu patrão, estão a ver?), que nos ía matar, que estava desgraçada. Mandei-a calar. Várias vezes. Mas estava possessa, não me ouviu. Enfiei-lhe o cuecão na boca gigantesca a ver se a acalmava mas ela rápido as cuspiu.


Eu é que não me acalmei.


Sabem o que fez?


Desatou aos gritos a acusar-me de a violar... Estão a ver a minha sina?


Deve de haver uma maneira de empandeirar este toucinho ambulante sem me entalar, pensei eu. E pensei bem. Fiz o sacrificio de lhe dar um beijo para a calar. A mulher parecía um aspirador e acabou por me libertar do pequeno troço de torresmos que ainda me asfixiava.


Bom, só vos digo que entretida a roer o petisco foi num instantinho que a pus a andar...


Deve de haver uma forma de me precaver contra futuros ataques. É que não sei se na próxima terei tanta sorte.

46.

Puseram o dedo na campainha.


(Mas que merda! É sempre quando estou a almoçar!)


Larguei a sandes de torresmos e lá fui. Até me engasguei! A mulher do patrão (Mas que é que esta gorda quer? O Natal já se foi!). Espreitei mais umas vezes pelo postigo para ter a certeza, mas era mesmo ela e insistente, que não largou a campainha. (Como é que ela sabe que estou cá a um Sábado?). Fiz-me de morto mas um sacana de um pedaço de torresmo ficou-me entalado na garganta e deu-me um ataque de tosse violento (Enquanto fui fumador assíduo nunca tive tosse...)


Ah! Senhor Guarda-livros, CUCU! Sei que está aí!


(CUCU???)


(Até que não ía mal um, um só unzinho chegava... Mas não a tua gadocha, OH gorda!!!)


Abra que está muito frio aqui fora!


Não tive outro remédio. Ainda meio asfixiado pela tosse e pelo torresmo que não sabía se havía de subir ou descer lá abri uma nesga da porta, mas a mulher do patrão atirou-se de carnes à dita e invadiu-me o espaço.


O espaço e a mim, um quase estupro, que me espremeu entre os seios e a esfregar-se toda, começou a murmurar Guarda-Livrozinho, mostra-me o teu compêndio (e deitava-me as mãos, se é que me percebem) Ai! Que grande volume! E eu sem me poder defender, sem voz, engasgado entre o torresmo e esta manta de toucinho, as lágrimas nos olhos da falta de ar e ela a dar-lhe, Ai filho, estás a gostar... Também eu!


Coíbo-me de reproduzir o resto...


Até nestas coisas menos próprias há que haver decoro. Devía de haver! Bastava esta não existir!


45.

E eis que chegamos àquela altura do ano em que tudo o que fiz ao longo daquele que já passou é analisado, esmiuçado, passado num pente mais fino que o das lendias.
Avaliação de desempenho.
A designação só por si tem que se lhe diga. Ainda mais, porque eu não chego a dizer nada. Ou seja, dizem os estatutos que eu devería auto-avaliar-me, depois sería entrevistado e finalmente havería uma reunião para se comparar como eu me vejo e como sou de facto. (Sendo que esta última parte é mais exactamente como o patrão me vê).
Disto tudo, depois de baralhado e remexido sai uma nota que vai de A (Génio), B(Regular) e C(Aquém).
Como o A obrigaría a que me promovessem e pagassem como tal, nunca o irei receber; O C é o despedimento e como não há mais nenhum para me ocupar o lugar... É fácil de concluír que sempre tenho sido e serei B.
B de besta, a besta do Guarda-Livros.
Devía de haver uma avaliação de desempenho para o patronato, ai devía sim... a primeira coisita a avaliar era o gosto do patrão pelas mulheres. Know what I mean? (Em inglês porque vai sempre bem)