61.

Acabaram as limpezas. Melhorei consideravelmente da alergia mas tenho as costas a doerem como as de Cristo depois da flagelação. Não tenho posição para nada. E claro, a vida continua: Vai de subir escadas, escadotes, carregar com pilhas de livros, dobrar, vergar, agachar, empoleirar, vai, vem, mais isto, mais aquilo.


A campainha não tem parado. Com a Primavera é sempre isto, qualquer macaco edita, qualquer um acha que escreve. E eu que me amole a entrar nas personagens, a saír das personagens, tudo uma piroseira!


Sim! Que eu sou Guarda-Livros mas sei o que é bom! Aliás... Eu daría um óptimo critico literário. Dos melhores. Imparcial (mas sem crueldade claro!).


O mundo está a perder-me, essa é que é essa. Ganhou um Guarda-Livros zeloso, cumpridor, orgulhoso das suas capacidades mas por dentro o meu coração é todo ele de critico literário...


Triste. E belo. Grandioso. Como só os bons corações conseguem ser...


Deve de haver no céu um lugar só para mim, um paraíso de mel e flores. Bem, flores não... Sou alérgico aos poléns.

60.

Larguei o espanador e os lenços. A minha alergia está a acabar comigo, estou ranhoso, choroso, os olhos inchados, a cara vermelha, respiro com muita dificuldade.


Tocaram, aquela cena irritante de sempre, põem o dedo na campainha, devem achar que estou ali à porta sem nada para fazer, só à espera que apareçam.


Era um fulano qualquer que não percebi o nome, venho para entregar o meu tesourinho (tesourinho?!), veja lá! Cuide bem do meu bébé! (bébé?!) Estão aí muitas horas de amor! Sabe qual é a parte que mais gosto? Quer que lhe mostre Sr. Guarda-Livros? (Lá terá que ser, não é?!) É esta aqui: Em que rejeitado pelo pai dedica a sua vida a endeusar a mãe e torna-se couturier!!! Não é lindo? (Liiiiiinnnndo!!!)


Ok, já me mostraste, está entregue, faz-te à vida que eu tenho mais que fazer!!!

(Maldita alergia! Não páro de chorar!)


Oh Sr.Guarda-Livros! Que sensível! Vejo que o emocionei! As suas lágrimas são a melhor recompensa para mim!!! Mas não fique assim! (Mas o que é isto???) Venha cá a meus braços, venha cá meu querido, pronto, já passou!


Será possível?


Escapo da mulher do patrão para caír nos braços deste mariconço? Será que este costureirinho não percebe que sofro de renite alergica?!


Devería de haver um letreiro para pendurar do lado de fora do postigo: Guarda-Livros sob alergia. Não aproximar.

59.

Ando numa fona! Não tenho parado, trabalho de dia e noite, pico o ponto às horas certas para não ser caçado e faço as limpezas no maior silêncio possível para não dar o flanco. O Patrão a insistir com a matrona da mulher, que ela faz muito gosto em vir ajudar-me (Ah! Pois deve fazer! O que ela tem gosto sei EU muito bem! Mas não! Desta vez não me apanhas grande vaca!)


Engraçado, que no meio dos pós (tenho sofrido tanto com a minha alergia...) e das traquitanas que não interessam mesmo nada, tenho descoberto coisas muito boas, muito bem escritas que já nem me lembrava... É uma pena maltratar-se assim alguns autores só porque não têm nome na praça. Coitados. Devem ser tão miseráveis quanto eu...


É que isto é preciso passar por elas para se saber o que custa. Há por aí muito boa gentinha que não vale um caracol, escrevem resmas de livros ao ano sempre com sucesso garantido. Aquilo não tem nada que saber, obedece a um esquema predefinido e depois é arranjar as personagens certas: Homem e mulher, amor desavindo, encontros carnais, despedida e já está. Ou então falar-se de qualquer coisa que ninguém sabe muito bem o que é (mas ninguém diz que não sabe), muito esotérica, muito superior, que soe muito bem e pumba! Mais um sucesso!


Acho que vou dar uma facadinha... Vou deixar aqui mesmo na estante principal um manuscrito que descobri que vale oiro. Só não é de ninguém conhecido.


Deve de haver quase de certeza algum esperto que apareça a dizer que conhece muito bem este autor... Só porque está entalado nos vendáveis. Tssstssss.

58.

Arrumações, a porra das arrumações e as limpezas, a Primavera. Ordens lá de cima. Quer tudo limpo e renovado, os títulos mais vendidos em exibição nas estantes dos corredores centrais, depois os outros por categorias.

(Deve pensar que esta merda é uma livraria... Só faltava pôr-me a vender os calhamaços para sacar mais algum! É melhor nem pensar nisto não lhe vá dar idéias...)


Ok, ok! E quem é que vem para me ajudar? Não consigo fazer tudo: Receber os exemplares, catalogar, subir as estantes e ainda fazer de criada! Ou vai haver horas extraordinárias? Pagas, quero dizer, sempre tenho o relógio de ponto para picar e se não cumpro lá aparecem aqueles marmelos da Inspecção do Trabalho. Ou então os gajos do Sindicato... Venha o diabo e escolha!

Está tudo controlado: A esposa ofereceu-se para me dar uma mãozinha, orientar-me, é muito boa nestas coisas das limpezas!
F!!!
Já sei quem é que ela quer limpar! Até ao tutano!
E agora? E AGORA???
Deve de haver uma forma de me escapar a este suplicio ou ainda acabo tisico!

57.

Está mais que visto que a minha sina nunca há-de mudar. A minha vida dava um fado, dqueles gemidos à moda árabe. Ninguém quer saber de mim, se estou vivo, se estou doente, se tenho que comer, se passo frio, se abafo entre estas toneladas de papel. Não se importam que eu leve o dia de pé, a subir escadas e escadotes, a trepar a estantes de alturas que dão vertigens até aos pássaros. O trabalho está todo nas minhas costas e por mais que já tenha pedido uma assistente, o patrão faz-se de surdo. Proibiram-me o último prazer concedido ao condenado de um fumozito de vez em quando e agora, quando quero um bafinho tenho de pôr a cabeça de fora do postigo e sujeitar-me às intemperies. A maior delas todas, a mulher do patrão, que me persegue, espreme e assedia fazendo-me homem-objecto. Sou pasto nas mãos do patronato e dos sindicalistas. Quero despedir-me e o patrão não aceita a minha demissão.



Deve de haver uma forma de eu ser dono de mim mesmo... Ou não?