68.

O inferno é aqui e agora.


Com as temperaturas disparadas no maior destempero e sem ar condicionado nem ventoinha, arrasto-me para cumprir o meu serviço.


É penoso manter o mesmo fato todo o ano, ano após ano, puídinho até ao osso, um frio de rachar no Inverno, um abrasão transpirado logo que chega o calor.


Houve um ano fiquei de cuecas, o termómetro subiu até aos 42º e eu pensei que ía derreter juntamente com o fato, os livros, as estantes, a minha posição de Guarda-Livros. Depois, só assomava ao postigo, nem abría a porta a ninguém, não quería que o calor entrasse pelo estaminé adentro. Não se estava bem mas suportava-se melhor. Melhor até a mulher do patrão aparecer a perguntar-me pela saúde. Claro que a perdi toda naquele instante, a mulher não foi de modas, deu um encontrão na portada e espetou comigo no chão.


Quando me viu naqueles preparos fez chantagem comigo: Quería mostrar-me a touca de banho nova. Uma coisa ignóbil e monstruosa aos malmequeres amarelos.


Juro que foi a partir desse dia que passei a odiar malmequeres. São todos pouco ou nada.


Devía de haver condições de segurança minimas para um Guarda-Livros que se preze poder desempenhar o melhor que pode as suas funções. Isto para não falar das alergias que as flores mesmo de uma touca de borracha me provocam.

67.

O que o relatório da Comissão de Higiene concluiu é que não é conclusivo.



(GANDA MALHA)



Vão ter que voltar, desta vez para fazerem testes, medirem os ruídos, instalarem um gingarelho para avaliar a qualidade dos ares...



(Há grandes tachos...)



Deixós virem! Eles andem, eles andem aí...


Só espero que seja aquela lasca outra vez a aparecer... Ainda a ponho a respirar o ar das prateleiras de topo e com jeitinho peço-lhe para me arrumar uns calhamaços.

Quanto ao ruído: Que ruído? Só se for o estrondo que as folhas fazem a tombarem de um lado para o outro!


Só me gozam. E um gajo tem que aturar isto...


Devía de haver uma lei que obrigasse estes trabalhadores de meia-tijela a saberem o que é o duro da vida, um trabalho mesmo, não um servicinho que é o que eles fazem. Mal e porcamente.

66.

Finalmente vou saber o que o relatório da Comissão de Higiene concluiu, já não era sem tempo.


Mas com aquela beleza a comandar a inspecção e a sorrir como sorriu para mim, não há-de haver motivo para preocupações. Depois, a cena dos fumos cá dentro já não acontecem. Cada vez que fumo um cigarrito meto a cabeça fora do postigo e até já arranjei umas pastilhas de hortelã-pimenta para disfarçar o hálito quando alguém me aparece a bater ao ferrolho.


De resto... Não vejo mais nada. A sopa que aquecía também deixei de o fazer, não há verba para a sopa, papo umas sandes de torresmos e está a andar. Depois esta coisa do comer tem muito que se lhe diga: É tudo um hábito. E já tenho a pele da barriga tão coladinha às costas que pouco alimanto cá cabe. Por outro lado passei a aproveitar da melhor maneira as personagens que nos livros detêm a acção no meio de refeições e lá vou fazendo uma boquinha (A minha favorita foi fazer de conviva no Festim de Babette, eheheheh, até lambi os dedos e deu para me aguentar por três dias).


Bom, agora é esperar as indicações de lá de cima mas se houvesse crise já tería ouvido aqui os berros do chefe.


Deve de ser bom sinal tanto silêncio, não deve?

65.

Estou uma lástima. Ninguém me dá a idade que realmente tenho. As costas curvadas de tanto peso que levanto, a tez acinzentada por pouco ver a luz do dia. Ninguém se importa, posso para aqui morrer que só darão pela minha falta se baterem ao postigo e ninguém aparecer para atender. De outra forma...


A verdade é que ninguém pensa em mim, e com isto não falo da minha pessoas mas da minha profissão. Quem é que nutre simpatia pelo Guarda-Livros? A maioria das vezes confundem-me com um gajo qualquer da contabilidade. Essa é que era: horário certinho, serviço sempre em dia, fim-de-semana, férias pagas e depois aquele respeito que a própria designação profissional tem: TOC.


TOC



TOC-TOC-TOC



Até a sonoridade impõe admiração.


Agora experimente-se dizer o mesmo em relação a mim: TOL



TOL-TOL-TOL



(Já os estou a ouvir... O quê? Tola? Tolo? Ah Tolstoi, mas é gago!!!)


Pois. A diferença que uma única letra faz. É todo um respeito que se perde.




Deve de haver uma designação melhor para a minha categoria profissional... Vou pensar maduramente nesta questão e em breve vou comunicá-la ao patronato. Isto não é só exigir.

64.

Só me faltava mais esta. A Feira do Livro. Daqui a dias acaba aquela estucha e depois é vê-los a correrem aqui ao postigo a chamarem por mim para lhes arrecadar o resto que não venderam.


Devem achar que esta merda é um depósito, uma arrecadação e que eu sou o criado deles.


Cada Editora aparece aí cheia de pressa, sempre mais importante que qualquer outra, rapam dos seus pergaminhos, do seu nome, a instituição cultural que são! Vê-se. Se fossem não tinham escritores de meia-tijela que tanto se exibem no Parque Eduardo VII como junto aos legumes de um hipermercado... Eu sei destas coisas, que eu sou informado e além disso escuto muito bem, ouço-lhes os mexericos, as intrigas.


E como se não bastasse levar com os gajos da Capital a seguir lá vem as pilhas dos gajos do Norte. Até ao fim de Junho não vou ter sossego, a campainha não vai parar, esgotam-me.


Devería de haver alguém a ajudar-me nestas alturas criticas! Eu sou só um! E ganho menos de meio Guarda-Livros!

63.

Não sei como é que isto foi acontecer, mas acho que o patrãozinho levou um aperto nos calos.


Agora temos o Livro de Reclamações.


Mas veio com um sem número de recomendações lá de cima: Não é para se dar, é para se evitar a todo o custo que seja solicitado, se for pedido a culpa é minha porque não soube dar resposta aos clientes, logo quem terá que responder por qualquer eventual reclamação terei de ser eu.


(Estava-se mesmo a ver, não é?!)


Mas se é para estas cenas todas para que raio serve ter um Livro de Reclamações?


Já tive aqui gente a refilar e soube dar a volta ao problema, nunca me pediram tal coisa, nem tão pouco fizeram queixinhas por não haver o bendito Livro cá no estabelecimento.


Diz que é obrigatório, o estaminé está aferido como qualidade e é obrigatório. Que grande lata! Se tem qualidade a mim o devem, por pouco já entreguei a minha vida por isto e ninguém me veio procurar se eu estava bem, se tinha algum pedido, alguma reivindicação a fazer em termos de segurança.


Eu já vos digo...


Tem de haver um Livro de Reclamações, não é?! Pois lembrem-se de escrever um ponto nele que seja! Até as folhas como!

62.

Ainda não estou em mim. Não sei se pelas ordens e pelo descaramento de as transmitir se por mim mesmo, Guarda-Livros, que as acatei de cabeça pronta para ser decepada.


Telefonema do patrão, na véspera do 1º de Maio.


É isso mesmo que estão a pensar: Não houve feriado algum, se é para se comemorar o dia do trabalhador que se trabalhe.


Eu disse-lhe que era uma data histórica, uma homenagem, uma conquista, os direitos e os deveres, a liberdade, A LIBERDADE (até me emocionei, palavra!)


Deixe-se dessas merdas de vermelho que isso é conversa para adormecer! E não me venha com aulas de histórias, aqui a estória é outra, é você que está armado em calinas e quería ver se me papava um diazinho a pagar-lhe! Pensava então que isto era fim-de-semana prolongado?! Eu dou-lhe as liberdades! Quer liberdade? Eu dou-lha: Ou trabalha amanhã ou desconto-lhe o dia, agora você escolhe! É livre para escolher!


Desligou.


Sem que eu pudesse dizer o que eu escolhía, sem eu poder exercer o meu direito de cidadão e livremente dizer-lhe...


No 1º de Maio cá estive a trabalhar. Um escravo nas galés, agrilhoado a um passado, presente e futuro que é cego à democracia.


Deve de haver um castigo planeado por uma força maior para este tipo de pessoas. Fascista. Reaccionário. Nazi.