10.

Conheço as minhas funções de trás para a frente e no sentido inverso.
Mas palavra de honra de guarda-livros, que há uma coisa que não entendo!
Quem é que escreve os livros? São os escritores.
Quem é que inventa aqueles enredos todos? São os escritores.
Quem é que faz nascer os personagens? São os escritores.
(Cansativo, não?!)
Quem é que decide a vida dos personagens? São os escritores.
Então porque raio é que quem se gosta nunca fica junto??? Por decisão dos escritores!
Poupem-me!
Já não aguento mais tirarem-me o doce da boca!
Deve de haver um meio qualquer destes escritores perceberem de uma vez por todas que eu sinto, vivo e sofro nas carnes tudo o que eles decidem!

9.

Às vezes, entre mudas de personagens e um cigarro para sossegar, ponho-me a pensar: Caramba! Nem toda a gente tem a sorte de ter um guarda-roupa como eu! As mulheres, então! Ui, ui!
Mas é verdade. Eu queixo-me mas consigo no mesmo dia ser homem, mulher e voltar a ser o simples guarda-livros de toda a vida.
Não pensem que é pera-doce!
Isto fatiga! Andar constantemente a mudar o figurino, as poses, a lingua, o perfil e o sexo! O sexo! Já pensaram?!
Pois...
Devem estar a pensar o que eu já me gastei de tanto pensar...
Deve de haver uma maneira de eu ser homem e mulher em simultâneo... Que grandes pinocadas!

8.

Se há pessoal que não quer ser encontrado, há outros que escrevem exactamente pela razão inversa. Escrevem porque querem tornar-se conhecidos.
Famosos.
Glamorosos.
Imortais.
Nem sempre o objectivo é conseguido e na maior parte das vezes sai-lhes o tiro pela culatra, pois passam a ser apontados como os piores escritores que se quiseram tornar nos melhores escritores.
Há aqui uma secção só dedicada a esta estirpe, prateleiras desde o chão até ao tecto, corredores imensos.
Felizmente que pouca gente aparece a pedir seja o que for daqueles lados.
E depois é péssimo para a minha alergia, está tudo cheio de pó.
Só os novos exemplares é que estão em melhor estado, mas nem mesmo os seus autores quando vêm com uma nota na mão para me untar ou falam grosso com a cunha deste e daqueloutro, me conseguem dar a volta. Nah! Aquilo é um foco de doenças. E depois, há sempre o regulamento.
Eu posso não ter escolhido esta profissão mas sou cumpridor e tenho brio no que faço.
E não sou corrupto, ora essa!
Nada me faría deslocar uma folha que fosse daquela secção para outra!
Aqui é assim que funciona!
Deve de haver alguém com poderes para mandar sacar este ou aquele livro de lá...shhhhh.
Mas enquanto isso não acontece, eu sou o guarda-livros e a única entidade a ter poderes para ali mexer.

7.

Se eu fosse revelar todos os segredos que sei sobre esta gente que escreve...
Por exemplo: Há gente que escreve porque não quer ser encontrada.
Arranjam uma identidade diferente e nunca mais ninguém os agarra.
Alguns tornam-se poetas. Verdadeiros mendigos da poesia. É vê-los juntarem-se como uma grande comunidade mas não falam entre si. Aquecem-se a um mesmo lume e consolam a fome em migalhas de um pão duro que só mesmo eles conseguem comer.
Eu admiro esta raça, sinceramente. Largam tudo e entregam-se a esta perdição. Mas é bonito. Até eu, sim euzinho, acho que gostava de ser poeta... apetece-me um cigarro. Quando fico melancólico é quando os cigarros me sabem melhor. Ficam com aquele travo das lágrimas que não se deitam cá para fora.
O meu contrato de trabalho proibe-me de chorar. Dedicar-me a alguém que aqui venha. Trabalho é trabalho e mais nada. Há que separar as coisas. Como os poetas. E não me consta que estes tenham alguma clausula que os obrigue seja ao que for.
Deve de haver alguma forma de um dia destes eu poder chorar poesia. Sem ninguém saber. Como que perdido daqui, percebem?
Deve de haver.

6.

Volta e meia aparecem por aqui uns marados a pedir a devolução das obras que deixaram cá.
Digo que não, não pode ser, é contra o regulamento.
Insistem, batem o pé, clamam o seu a seu dono.
Mostro-lhes o regulamento. Tenho vários exemplares do regulamento. Geralmente despedaçam o regulamento e atiram os bocadinhos pelo ar. Injuriam-me. Ofendem-me: na minha dignidade e no meu profissionalismo. Mas não me demovem.
É quando choram. Babam-se. Ajoelham-se, imploram.
Não dá. Não posso, não vêem?
Não, não vêem nada, estão cegos pela idéia fixa de levarem o que escreveram e sabe-se lá, dar-lhe o destino da fogueira.
O caso mais dramático que tive que resolver até hoje foi com um louco que me apanhou de surpresa. Depois de me ter convencido a mostrar-lhe o manuscrito, desatou a rasgar as páginas e a comê-las. Foi uma trabalheira! Tive que o agitar e virá-lo ao contrário, pelas pernas, de cabeça para baixo, sacudi-lo. Claro que o trabalho de reconstituír as folhas sobrou para mim.
Claro! O guarda-livros está cá para tudo! Até para estes trabalhinhos de merda!
Porque não lêem a porra do regulamento?
Não sabem que não há devoluções?
Pensam que isto é uma secção de Perdidos e Achados? Ou Achados e Perdidos?
Caramba! Respeitem quem trabalha!
Deve de haver uma maneira desta gente saber quais são as suas responsabilidades... Escritores!

5.

Sou guarda-livros, já o disse.
Mas o que eu gostava mesmo de ter sido era professor. Ensinar. Chamarem-me Mestre, como eu chamei aos meus professores.
Ou usar uma bata branca. Como os médicos. Curar a aprendizagem e dar cultura aos mais novos. Ensinar.
Sou guarda-livros.
A verdade é que ninguém gosta de mim. Acham-me um chato.
Não há uma única menina que se interesse por mim. Das que chegam para largar os seus livrinhos. Nem se importam que eu lhes conheça os segredos, os anseios, os suspiros...
Dizem-me logo Contabilista... Esta piada já está gasta! Não, não, sou guarda-livros e tento explicar qual é a minha profissão. Mas ninguém quer saber, arranjam logo uma desculpa e deixam-me a falar sózinho.
Sou guarda-livros e sou muito infeliz.
Deve de haver alguém neste mundo que me aprecie por aquilo que sou.
Que não me vejam apenas como uma profissão.
Deve de haver... Ou terei que começar a sentir pena de mim mesmo.

4.

Há livros que ensinam a escrever, têm uma fórmula como a coisa há-de ser orientada, o esqueleto da história deve obedecer a um intróito, um pico de tensão e depois a resolução e dizem os autores, que isto é tiro e queda.
Basta que a temática seja bem escolhida.
AH!
O segredo está no tema, se bem que os calhamaços que têm mais procura são os que falam de amor. E se for um amor cigano tanto melhor. Mas os amores impossíveis batem os recordes.
Eu que sei disto tudo até que podía ser o autor com mais condições para fazer saír um best-seller. Mas o meu contrato tem uma clausula que me proibe toda e qualquer actividade relacionada com a escrita e mesmo que me atirasse a uma façanha destas com o argumento do lúdico sería coisa para não saír da gaveta, nem mesmo para mostrar aos que entram, largam a sua obra e vão-se.
Resta-me a vivência, a amarga vivência de todos os heróis e heroínas que se derretem por uma coisa invisivel e letal como o amor.
Imaginam vocês quantas vezes já morri e renasci?
Isto cansa. Envelhece. Mas de todas as vezes sinto sempre como a primeira, a novidade de me apaixonar e sentir o fogo consumir-me lenta e doloridamente...
Deve de haver algum autor que tenha escrito um livro com uma fórmula simples sobre como não nos apaixonarmos... Tenho de procurar. Deve de haver. Tem de haver que o meu coração já não aguenta.

3.

Chegou um romance novo.
É bom.
Mas incómodo. Obriga-me a andar de stiletos o dia todo. Acho que até me assentam bem, a barriga da perna fica esguia e ao ver-me ao espelho não consegui deixar de ter esta sensação quente de me sentir femme fatale, mas tenho que treinar mais os sapatos.
Já arranjei um cinto de ligas e uma tanga em couro. Os seios crescem-me por cada capítulo que apreendo e agora estão fantásticos: tenho uns mamilos sempre duros e à medida que a estória se desenrola dedilho o meu sexo rapado.
Claro que não passo disto, que sou só eu sózinho e a heróina reparte-se numa vida dupla de admnistrativa durante o dia e puta à noite. Confesso que gosto mais dela puta, é muito mais atractiva a vivência de um quarto de pensão de 5ª categoria do que uma repartição de finanças e em termos de climax facilita-me muito.
Depois, há muitas semelhanças entre esta mulher de mangas de alpaca e aquilo que sou verdadeiramente: Uma actividade desinteressante, cinzentona e desapaixonada de aventuras.
É aqui que me apercebo da minha solidão.
Embora seja um entra e sai de gente com os livros que chegam e eu tenho de catalogar, arquivar, fazer ficha, estou sempre abandonado a mim mesmo. Sou só o guarda-livros. O outro. O que parecendo ser um contabilista não é, tomara eu o regabofe dos TOC!
Guardei o traje da puta, voltei ao meu fato puído e com cheiro de naftalina.
Ela morre no final, num acto inglório para salvar as declarações de IRS atacadas pelo fogo por um contribuinte enlouquecido pela execução fiscal.
Devería haver outra forma de a lembrar, de a prestigiar...
Mas eu sou só o guarda-livros, não sou o autor.

2.

Cigarro após cigarro. Como folhas que se folheiam na continuidade do texto. Até atingir o ponto final, sem mais parágrafos, alguns acham que eu não percebo que é o fim e escrevem Fim.
Amachuco o maço vazio.
Na falta imediata procuro pontas de cigarros que não tenham sido fumadas até ao fim. Por vezes os livros têm continuidade, é uma boa maneira de vender uma estória que tanto podería ficar por ali como arrastar-se pelas gerações futuras e render mais um bocado, mesmo que o conceito tenha deixado de ter interesse e os próximos até caiam mal fazendo esquecer o tomo primeiro, que até agradou.
Demasiado alcatrão, escaldam os lábios e os dedos estas beatas...
Nada como um cigarro fresco, novo, o doce aroma das folhas ripadas e enroladas na mortalha fininha e maleável.
Há livros que nem vale a pena passarmos do primeiro capítulo, é tudo muito do mesmo, aquela cega-rega desgraçada em que se pena até à separação total dos personagens e acaba tudo num mar de lágrimas.
Mas vende, o que as pessoas gostam é do declinio alheio... Por vezes tenho ataques de tosse que duram minutos, prometo-me que vou parar com este maldito vicio.
Mas depois lá chegam mais livros, guardo-os, engulo o seu conteúdo e vai tudo para baixo. Fumo mais um cigarro, o prazer depois do prazer. Às vezes...
Deve de haver qualquer outra coisa que me faça menos mal, que não me provoque estes acessos de falta de ar e esta sensação de ter um saco de gatos dentro do peito. Talvez livros cientificos... Deve de haver.

1.

Sou guarda-livros.
Gostaría de ser qualquer outra coisa menos guarda-livros. Não ter o peso da responsabilidade sobre o cachaço de ter de saber de todos os livros e o que lá vai por dentro. Ser ignorante de todas as letras e desconhecer por completo o que se passa neste mundo inconstante sobre o que os outros um dia lhe apeteceram escrever e nem sequer se ralaram com a tarefa que me atiraram, Toma lá! Guarda! e cá vai disto.
Fui nomeado sem votação, um referendozito sequer que auscultasse sobre os prós e contras de atribuírem tanto perigo a um homem só. Ninguém quer saber, desde que seja outro está tudo bem.
Acaso pensaram que eu sabendo dos amores não me apaixonaría? Que debruçado sobre estratégias de guerra faría do meu braço a voz de comando sobre cada frase que se debulha entre pó e sangue? Que poeta lido poeta sería? E mulher? Ah, pois é! Isto não é nada fácil parir, ser violado, atascar-me docemente entre crianças e rendas de sedução! E num repente volta ao homem, esperam-me erecto, de prontidão na virilidade imediata, sem descanso, sem pausas, sem direito a preliminares, é só lembrarem-se de sexo e deixam-me em ponto-rebuçado!
Pronto.
Quería que soubessem que não foi escolha minha.
Muito provavelmente tinha o meu destino marcado e assim sendo, nada a fazer.
Mas deve de haver qualquer outra coisa que eu pudesse ter sido...
Qualquer coisa... Deve de haver.