31.

Silêncio absoluto.
Isto também me complica com os nervos. Não saber. Que será que vai acontecer? Será que vão acreditar naquela gaja e pendurarem-me a mim? Ou vão deixar caír tudo em saco roto e pronto, fica o dito por não dito... Até este silêncio me perturba. Tira-me a concentração. E tanto para fazer!
Os livros não páram de chegar. É o mesmo de sempre por esta altura. Muita história infantil. Escrito por adultos que não têm a menor graça.
Devíam de haver histórias infantis escritas pelos miúdos. Eles é que sabem. Sei do que falo. Eu também já fui miúdo, embora não pareça.

30.

Quando um gajo está com azar até o cão lhe mija em cima!


O inquérito... Só a mim! Um sacana de um inquérito que me metralharam por causa de uma queixa daquela grandessissima vaca, que não tem outro nome!


Sim! Aquela vaca disfarçada de menina poetisa!


Então não é que foi queixar-se que tinha sido vitima de assédio sexual?
Por mim?!
Eu!

EU!!!


Eu sei bem o que ela quería! Quería brilhar à minha conta, às custas do Guarda-Livros! Quería protagonismo! Mas a coisa saiu-lhe mal, lambisgóia deslambida, ressabiada, mosca-morta! Ainda se fosse alguma gaja boa, mas aquilo?! Oh filha, como tu tenho eu o armazém cheio!!!


Se calhar pensava que chegava e me dava a volta! Vá-se fod... ai, eu é que sou bem educado e estou no meu local de trabalho! Cala-te, cala-te...


E agora?! Já viram? Uma carga de trabalhos!
Fui espremido até à quinta casa e saí de lá sem saber o que me vai acontecer!


Não mereço isto. Sinceramente, é demais...


Devía de haver um Santo protector dos Guarda-Livros, alguém a quem rezar alguma coisa nestas ocasiões... mas parece-me a mim que a minha sorte é isto mesmo: um azar do cara...go.

29.

OUTRA VEZ???


O patrão mandou uma nota interna. Que precisa que suba e me apresente para prestar declarações. Mas que fique já a saber que me foi instaurado um inquérito. Um inquérito? Mas sobre o quê? O que é que eu fiz? Já não fumo dentro das instalações, pico o ponto quatro vezes por dia. E volto para o serão à luz das velas para poupar energia e não dar fé para fora que estou a trabalhar... O que é que falta???


Ah! Já sei! Deve ter sido por causa da personagem do último livro que aqui entrou... É que não aguentei as botas, aquele vinyl fez-me uma alergia nos joelhos, deu-me cá uma comichão! E antes do fim, tive que desempenhar a heróina descalça. Desculpe lá, mas não deu para aguentar! É que depois quem tem que andar de pé o dia inteirinho sou eu! Até me incharam as rótulas! Já pensaram se a merda da brotoeja me sobe pernas acima?! Ah! Pois é!


... Deve ser isso. Não estou a ver outra coisa. Mas tanto alarido por causa disto? Um inquérito por causa de um pormenor?


Que será que vem por lá?


Será um inquérito de satisfação? Estão muito na moda. Não adianta pevide mas parece bem, fazer de conta que se liga ao bem-estar dos empregados. Perdão! Dos colaboradores! Já não se usa o termo empregado, só colaboradores.


Bom... Deixa-me ir.


Deve de haver um dia em que o patrão se interessa pela minha condição. Quem sabe não é hoje?!


VOLTO JÁ

28.

Que toquezinho irritante... daqueles que se acham músicos quando põem o dedo na campainha e fazem variações do "Cochicho da menina"...

Abro o postigo, contrafeito e com cara de poucos amigos. É para que saibam que aqui o Guarda-Livros não dá confiança a este tipo de escritores, era o que mais faltava! Distância, distância!

Ah! Mas que bela surpresa! A Menina Poetisa?! Então lembrou-se dos pobres?
De quem?
(Arre que é estúpida!)
De mim, do seu Guardazinho-Livros!
Ah! Pois...
(Esta gaja não atinge...)

Sabe o que eu tenho vindo a pensar Sr.Guarda-Livros? (Não, mas desconfio que ela me vai dizer...) O Senhor aqui, com tantos conhecimentos (e foi entrando pelo estaminé adentro), com tanta gente que escreve tão bem, sempre a recebê-los, a viver as suas obras, eles com as suas confidências, vá lá, não diga que nunca lhe contaram os seus segredos? Olhe que eu não acredito...

E foi-se chegando a mim. Assim. Em pleno horário de expediente. À luz do dia. A meter-me as mãos pelo casaco, pelos bolsos das calças e até um apalpão no traseiro!!!


... Não estou a perceber Menina Poetisa...


Oh, Senhor Guarda-Livros não se faça de desentendido... já deve ter percebido que tenho ânsias por si...


(ÂNSIAS???)


(Vais ter que ir ao castigo! E hoje até fumo um cigarro para comemorar!)


Se o senhor for bom para mim eu sou boazinha para si... Como assim? Ora, basta que ponha a minha obra na prateleira de destaque...

Pois é! Isso é que não pode ser! Trabalho é trabalho, Menina Poetisa é outra coisa! Eu cumpro escrupulosamente o serviço e estamos em plena hora de despachar! Desculpe lá, mas isso não pode ser! Eu não funciono com cunhas! Não me vendo, não sou corrupto, não troco favores! E agora agradeço que se retire! Estou muito ocupado!

Desatou numa chinfrineira que temi que as estantes ruíssem. Praquejou, calçou as chinelas e foi o bom e o bonito! Ameaçou-me. Chamou-me murcho. Murcho EU?!

Andor, andor! Querem lá ver?!

Deve de haver uma maneira desta gentinha perceber que eu sou um Guarda-Livros sério. Nem a carne me demove!

27.

Com que então relógio de ponto?

Acaso pensam que não cumpro escrupulosamente o horário? Que me baldo?
E as horas que dou aqui? Os serões?

Isso não conta não é, pois...


O patrão ligou: A partir de agora é para picar quatro vezes ao dia. De manhã, ao almoço, saída e entrada e no final do expediente.

Mas o senhor sabe que eu estou sempre aqui, que faço o meu serviço, para quê essa desconfiança ao fim de todos estes anos?
Não é desconfiança, é por causa dos gajos da Inspecção. Assim não o agarram mais.


Ah! Já podía ter dito!


Claro! Mas continua a contar comigo para estar disponível, como sempre, nada mudou, é só aquilo do relógio de ponto para não haver chatisses...
E já agora... Como vão as entregas do Natal? Não quero nada atrasado, tudo catalogado e nos sitios!
Vá lá, que depois na consoada lembra-se de mim...


Pois lembra! Mais um par de coturnos e um cartãozinho miserável!


Devía de haver mais consideração. Afinal isto da antiguidade também é um posto e eu já merecía uma condecoração.

Hei-de morrer em serviço, essa é que é. E nem viúva há para ficar com a pensão...

26.

Recebi uma notazinha lá de cima.
Para estar preparado que vão aparecer os serralheiros.

Os serralheiros?

Será para estantes novas? Estas estão a rebentar pelas costuras... mas as estantes são todas em madeira de cedro e nogueira, não percebo que raio de modernices são estas...


Lá apareceram, às pancadas à porta, não souberam carregar na merda da campainha como toda a gente!

Sim, sim, já sei, só não sei ao que vêm...
Nada. Moita carrasco, fecharam-se em copas e não me disseram nada.
Furos, marteladas, um chiqueiro a caír das paredes. Um deles só assobia, não faz nenhum, dá umas palavras ao outro que morde uma beatinha que está sempre do mesmo tamanho, mas não percebo rigorosamente nada do que dizem.


Ouça, não se pode fumar aqui!

Fazem de conta que não existo. Nem me olham, nem me respondem.


E de repente... quando olho para a parede mesmo ao lado do postigo da porta de entrada...


Mas o que é isto???
Um relógio de ponto?


Devía de haver mais consideração por mim. Afinal aqui, eu sou a autoridade, o chefe supremo, o único aliás. Mas parece que sou o corno, o último a saber de tudo.

25.

A vida tem cada coisa...


Estava eu nas minhas lides quando puseram o dedo na campainha e vai de tocar sem parar. Deve de haver fogo, pensei eu, ou vão tirar o pai da forca... Calma, calma, que isto aqui é só um e já lá vou.


Abri o postigo e qual não é o meu espanto quando vejo a menina poetisa, toda lavadinha em lágrimas a pedir-me ajuda!

Oh! Menina! Mas que aconteceu? Deve ter sido uma desgraça para me chegar aqui nesse estado! Mas entre, entre e conte ao seu amigo Guarda-Livros o que lhe fizeram!
Pois foi, uma grande maldade, uma tragédia a bem dizer!
A critica ao seu livrinho de poemas não podía ter sido pior!


Oh! Menina! Não dê ouvidos a essa gente! São todos uns mal-amados e por isso vingam-se nos que têm sentimentos! Acredite em mim, que me passa tudo pelas mãos!
Vá lá, um sorriso para o Guarda-Livros, só um...


Ai que linda!
E agora um beijinho, só um, vá lá só um... Chegue-se aqui, olhe sente-se no meu colo que eu conforto-a... Ai, que rica menina, ai, ai...


E pronto.
A vida tem cada coisa. Fiz uma menina feliz e ela a mim. Acabou tudo bem.


Devía de haver sempre, mas SEMPRE, finais como este. Garanto-vos!

24.

Estava eu de postigo aberto e cabeça de fora a fumar um cigarrinho (sim, que deixei de fumar cá dentro) quando me apareceu uma jeitosa com os livros para entregar.

Apressei-me a apagar a beata (não vá esta gaja também fazer queixinhas...).


Ora diga lá ao que vem, Menina...


Vinha para entregar os livrinhos - isso sei eu, não é? - é poetisa, é a sua 1ª publicação, custou mas foi, o Sr.Guarda-Livros quer ver? Quer, o Sr. Guarda-Livros quer ver, tem todo o interesse em ver os poemazinhos que nasceram das mãozinhas tão delicadas da menina.


A Menina não quer entrar? Aí fora faz frio...


Entrou.

Lá abri aquilo, como se eu não soubesse o que lá estava, ah! Que coisa tão bonita! Então o Sr.Guarda-Livros gosta? Gosto Menina, gosto muito, chegue-se aqui, não quer ler para mim?

E ela lá se chegou, poema prá'qui, risinho prá'colá, toquezinho na perninha, braço no ombro e mais umas estrofes e olha!


Que lindo verso... ai que lindo verso, Senhores!


Devía de haver mais dias como este.

Devía de haver mais meninas poetisas como esta...

23.

Tenho uma tristeza tão grande dentro de mim que só me apetece chorar e abraçar-me.
Nem para isto há uma alma caridosa que me ofereça conforto, um ombro... choro e abraço-me, choro e ouço-me.


É triste ser sózinho.
Sem mais ninguém no mundo.
Um ilha de mim mesmo.
Que se afunda nas suas lágrimas.


Estas últimas horas obrigaram-me a reflectir sobre toda a minha existência...

O que é que eu faço aqui?
Que diferença faço eu neste mundo?
O mundo estranharía a minha ausência?
Afinal... menos um Guarda-Livros, mais um Guarda-Livros, não tería importância alguma...


Ai, ai...


Deve de haver qualquer outra coisa que eu possa ser nesta vida para além de Guarda-Livros.
Não sei fazer mais nada, mas eu aprendo rápido...
É que por este andar nem chego à reforma.

22.

Pois... O patrão não estava nada satisfeito.

Apresentou-me uma nota da Inspecção do Trabalho a dizer que tem cinco dias para explicar o horário do seu funcionário (moi!) ou fica sujeito a uma coima.


E sabem o que o patrão me disse?

Que não vai pagar nada. Que não me incumbiu de serviço nenhum a deshoras. E que se aqueles comunistas (sic) insistirem na multa que a desconta do meu salário. Que não dá para sindicatos nem para preguiçosos.

E eu vim de lá de rabo alçado.


E agora?


Não há justiça, mesmo!


Deve de haver alguém a quem eu, sim eu que sou a maior vitima disto tudo! poder queixar-me...

Auxiliai!

21.

Ligaram-me. O patrão. Quer que eu vá lá acima esclarecer umas coisinhas... depois da hora de serviço.

Eu vou mas não sei ao que vou.

Raras vezes subo até ao topo. Geralmente é pelo Natal para me darem as peúgas e o cartão, a outra é pelos quinze dias de férias que me dão e para passar o serviço ao guarda-livros que me substitui.

Não estou com bom pressentimento... Até tenho as mãos a suar e dói-me a barriga.

Que será que eu fiz para me chamarem?

Isto não é nada oportuno, estou cheio de trabalho e as coisas não aparecem feitas se não for eu, que não há mais ninguém, não é? Sou só eu, sempre eu, tudo eu...


ESPERA!


Será que finalmente vou ter uma assistente?

Oh! meu senhor que estais lá em cima!
Juro que se for isso deixo mesmo de fumar! Palavra de Guarda-Livros!

Deve de haver um dia em que a sorte muda, não?