3.

Chegou um romance novo.
É bom.
Mas incómodo. Obriga-me a andar de stiletos o dia todo. Acho que até me assentam bem, a barriga da perna fica esguia e ao ver-me ao espelho não consegui deixar de ter esta sensação quente de me sentir femme fatale, mas tenho que treinar mais os sapatos.
Já arranjei um cinto de ligas e uma tanga em couro. Os seios crescem-me por cada capítulo que apreendo e agora estão fantásticos: tenho uns mamilos sempre duros e à medida que a estória se desenrola dedilho o meu sexo rapado.
Claro que não passo disto, que sou só eu sózinho e a heróina reparte-se numa vida dupla de admnistrativa durante o dia e puta à noite. Confesso que gosto mais dela puta, é muito mais atractiva a vivência de um quarto de pensão de 5ª categoria do que uma repartição de finanças e em termos de climax facilita-me muito.
Depois, há muitas semelhanças entre esta mulher de mangas de alpaca e aquilo que sou verdadeiramente: Uma actividade desinteressante, cinzentona e desapaixonada de aventuras.
É aqui que me apercebo da minha solidão.
Embora seja um entra e sai de gente com os livros que chegam e eu tenho de catalogar, arquivar, fazer ficha, estou sempre abandonado a mim mesmo. Sou só o guarda-livros. O outro. O que parecendo ser um contabilista não é, tomara eu o regabofe dos TOC!
Guardei o traje da puta, voltei ao meu fato puído e com cheiro de naftalina.
Ela morre no final, num acto inglório para salvar as declarações de IRS atacadas pelo fogo por um contribuinte enlouquecido pela execução fiscal.
Devería haver outra forma de a lembrar, de a prestigiar...
Mas eu sou só o guarda-livros, não sou o autor.

Sem comentários: