56.

O telefone tocou. Animei-me. Pensei que era para me marcarem alguma entrevista, ou que tinha sido seleccionado para me candidatar a um novo emprego.


Um berro.


O patrão.


Mas onde é que você pensa que está?
Aqui não se faz greve! E ninguém se demite! Se tiver de ser sou eu que o despeço! E agora toca a trabalhar que é para isso que lhe pago!


Mas... Eu demiti-me! Não trabalho mais aqui!


Ai não? Então que está a fazer aí? Está em propriedade alheia! Tenho de chamar as autoridades para o porem daí para fora, seu intruso!


Não é isso!


Não?! Não recebi nenhum pedido de demissão e mesmo que o tivesse recebido não me interessava nada! Quem manda aqui sou EU! EU O PATRÃO! Ou pensa que esta merda foi nacionalizada?! Isto não é uma instituição bancária Sr. Dr. Guarda-Livros! E vamos a bulir ou tenho que lhe descontar no vencimento como faltas injustificadas! Mandrião! Grevista!


Mas, mas, mas... Desligou-me o telefone na tromba. Não me ouviu, não ouviu a minha argumentação, o meu desespero, como estou desmotivado.


Deverá haver no mundo outro que se sinta tão mal quanto eu... Sou um futuro ex. Guarda-Livros nascido, Guarda-Livros toda a vida. Que cruz.

55.

Ora então , devem ter pensado que aquilo de me demitir era só da boca para fora!

Não é?!

Não, não é!!!



Acabou!



Até um Guarda-Livros tem o seu orgulho, o seu carácter, a palavra de honra!


E se disse que me demitia, é porque me demito MESMO!!!



Não mexi nem mais uma palhinha! Nada! Estão a perceber?! Mesmo nada de nada!


Os livros estão à porta, do lado de fora pois está claro, que não abro o postigo mais vez nenhuma, deixei de ser escravo, tenho comido o pão que o diabo amassou e sempre cumpridor, sempre escrupuloso, sempre ciente dos meus deveres.



Já viram que paga tive? Pois que se lixe! Acabou-se o bonzinho do Guarda-Livros! Estou livre para aceitar os empregos que me quiserem oferecer. Empregos, ouviram bem. Trabalhos tenho eu tido desde sempre, mais que o Hércules, que foi um menino de coro ao pé de mim.



PFFFFF!!!


(Esta cena de reclamar também cansa...)



(Quem será agora o cabrão que está a tocar ao postigo?... Toca prá'i oh boi! A ver se me mexo...)



Deve de haver um outro qualquer serviço que se encaixe nas minhas aptidões. Não acham?

54.

E como se não bastasse os gajos do sindicato tive depois que levar com o patrãozinho.


Ou seja: O patrão achou que os sindicalistas apareceram por eu ser um queixinhas.


EU?


Eu sou o Guarda-Livros. Aquele que aguenta todas as personagens, o que trepa escadas e escadotes para no topo das estantes arrumar os calhamaços que ninguém conhece a não ser eu, eu sou o Guarda-Livros, o que recebe os manuscritos e as confissões ansiosas de quem nunca verá nada vir a lume, eu sou o Guarda-Livros, aquele que não escolheu ser Guarda-Livros mas aceitando a minha condição sou o melhor Guarda-Livros que há porque tenho honra e brio no que sou. E não, não sou contabilista, sou eu que guardo os livros.


Devería de haver outra forma de todos, TODOS, entenderem o que sou. Mas uma vez que parece não haver só me resta uma saída: Demito-me.

53.

Apanharam-me completamente desprevenido. Apareceram logo a seguir à hora do almoço, exactamente quando me dá aquela lambina do aconchego da sopa quente no estomago e não tenho consciência total do que está a acontecer.


Bateram no postigo, nada de campainhas. E eu, moita. Deixei-me estar, podía ser que desistissem. Outra vez, aqueles toques com os nós dos dedos, depois a voz:


Camarada! Camarada Guarda-Livros!


(Isto é comigo?)


Lá fui, uma nesga do postigo e um só olho a ver o que era, mas os gajos escancararam-me a portada e passaram-se para o lado de dentro.


Assustei-me: Queres ver que vêm para roubar o estaminé? AH! Mas isto não fica assim! Que eu por esta merda até dou a vida!


Calma, disseram, somos camaradas do sindicato, viemos saber se está tudo bem! Hã... Está tudo bem... Tudo bem, tudo bem...


Então se está tudo bem por que é que deixaste de pagar as quotas do sindicato?


Hein?


Deve de haver uma maneira qualquer destes tipos perceberem que estamos a atravessar uma crise. E que eu deixei de ter direito a subsidio de almoço. E que o sindicato a levar-me 1% do que ganho ainda contribui mais para a minha pobreza. Mas não. Apareceram agora que o graveto está em falta. Onde estavam quando o patronato me quis pôr um processo disciplinar?

52.

Foi uma noite em cheio!


Mas a rapariga insistía naquela posição de costas e vá de pedir!


Ora eu não sou um Guarda-Livros que negue um gosto e assim como assim, lá lhe fiz a vontade. Aliás, as vontadinhas todas! Não me deu descanso, insaciável, e depois aquele divã é mesmo de pessoa só, dá cá um mau jeito às cruzes!


Pelo raiar da manhã levantou-se, disse que não me quería trazer problemas (Agora é que pensas nisso, filha?!), que se ía refrescar e pôr-se ao fresco. Vi-a afastar-se em direcção à casa-de-banho, que mulherão! E como não quería perder a oportunidade de a ver à luz do dia, fui atrás dela.


Mas qual não foi o meu espanto quando vejo a menina a verter águas de pé! De pé como os machos! E depois de se sacudir virou-se para mim e disse que durante uns tempos ía custar a sentar-se, tal não tinha sido o tratamento que eu lhe havía dado!


Bom... Que posso eu dizer?! eheheh... Pois.


A carne é fraca e quando não se tem cão caça-se com gato... Deve de haver mais uns quantos que também já caíram, não?! E estão calados como ostras...