20.

Alguém me deve ter rogado uma praga!


Isto é que é maré de azar!

Depois de tudo o que ando a passar mais as privações da nicotina que me deixam um feixe de nervos, a correría que tem sido por causa das publicações que entram até ao Natal, só me faltava isto!


Eu explico:


Tenho feito serão para ter tudo arrumado e em condições. Tudo preparadinho para começar o dia seguinte. E olhem que não é fácil! Sou só eu! Tem sido um veste e despe que não aguento, isto para não falar das personagens que usam salto alto! Imaginam o que é andar a acartar com os calhamaços e a subir escadotes com uns stiletos de 10 cm? Experimentem!


Estou que nem posso!


Mas dizia eu... tenho feito horas (não é que mas paguem, já sei, claro!) mas o meu brio profissional não permite que feche o estaminé assim, sem mais nem menos, só porque é hora de abalar! Fico até deixar tudo nos lugares devidos, as fichas já de prontidão para o dia seguinte.


Pois estava eu ontem, já completamente de rastos, quando me vieram bater ao ferrolho. Primeiro nem liguei, deixa tocar prá aí, devem pensar que isto é o da Joana ou a Santa Casa... mas insistiram, colaram o dedo à campainha, até bateram com os pés na portada.


Fui-me a eles!


E ía caíndo de cu quando se apresentaram... Inspecção de Trabalho.


Deve de haver uma maneira de um homem ganhar a vida honestamente sem ser massacrado continuamente.



OU NÃO???

19.

Até ao Natal vai ser uma estafa.
Todos os dias me aparecem aqui com os exemplares que hão-de lançar até à altura das compras e em que o pessoal tem uns dinheiros para torrar em porcarias que não servem para nada.
Assim são muitos dos livros que aqui entram: uma pepineira. E uma canseira para mim, que não páro de entrar na pele do homem das barbas brancas para logo a seguir fazer de serial killer ou de gaja esquizo que para além de gostar de levar atrás faz colecções de embalagens de sumo.
Tudo aparece e o curioso é que se vendem.
De mim ninguém se lembra... vá lá, a mulher do patrão manda-me sempre um par de peúgas de lã acompanhado de um cartão festivo que quando se abre toca o White Christmas. Fico a ouvi-lo até a pilha acabar...
O que eu gostava mesmo de receber este ano era uma assistente. Sempre era uma companhia, alguém com quem falar, dava-me uma mãozinha... as duas, uma perninha... ai, é melhor deixar de sonhar alto.
Deve de haver alguém que se lembre de mim. Que se lembre que sou simpático e estou aqui para receber quem chega e mais! Quem lhes guarda as obras e cuida delas sou eu, não um desconhecido qualquer, mas eu, o Guarda-Livros.

18.

Era só o que me faltava!
Em tantos anos uma folha de serviço limpissima, sem mácula, até tenho lá um louvor e agora isto?!
Na última semana, os auditores, a ordem de serviço, largar os cigarros e hoje, bem hoje... uma notificação.
Um jornalistazito de meia-tijela que pensa que é escritor pediu o livro de reclamações! Fala em mim, na minha atitude violenta e inibidora das grandes liberdades, que foi vitima de ameaça fisica e intelectual, que o impedi de se expressar em toda a sua veia criativa!
Mas o que é que se está a passar???
Está tudo doido?
Eu já lhe dou a veia criativa... pedem-me para responder com a verdade.
Qual verdade? A minha ou a dos outros?
Eu respondo, sim senhor Então não se está mesmo a ver que o Sr. Jornalista quería deitar fogo ao armazém? E eu, arriscando a minha vida no cumprimento da minha actividade evitei tal acto tresloucado e desmedido!
TOMA!
Mas tudo isto me deixa triste, muito triste e desmotivado.
Deve de haver uma verdade única. A que se baste. A que não trema.
(Hoje tenho mesmo de fumar uma cigarrada. Tudo isto foi demais para mim...)

17.

Vai para quatro dias que não fumo.

No primeiro dia passou-se bem mas depois é que foram elas! Nem me conseguia concentrar no serviço. Rapei tudo o que era resto de beatas e enrolei uma mortalha mal amanhada com cheiro de requentado. Tive um ataque de tosse tão forte que pensei que ía asfixiar no nó da gravata.


Sinto-me triste. Ainda mais sózinho que antes. E tenho um gosto amargo na lingua como nunca tive nos dias de fumador.


Tenho que resolver esta questão o quanto antes: não quero nem consigo deixar o cigarro mas também não quero desobedecer ao patrão.


Por outro lado, hoje deu-me um gozo enorme ter aparecido por cá um jornalista a entregar o seu manuscrito. Vinha cheio de vento e de beata na ponta dos lábios. Descarreguei...


Oh amigo! Aqui não se pode fumar, tá bem, tá bem...


E não me ligou pevide!

Ora, aqui a autoridade sou eu, eu é que mando! E se eu disse que não se podía fumar era para apagar aquela merda num instantinho!


Arranquei-lhe a pirisca da boca e amachuquei-lhe o cigarro mesmo à frente das ventas! Toma lá para aprenderes, Oh jornalista!


Diz que vai fazer queixa de mim.

Que vá.

A quem?

Deixa-me rir...


Deve de haver uma maneira destes gajos me respeitarem, não porem a minha autoridade em causa, verem que isto é serviço e serviço - fumadores e não fumadores - é SERVIÇO e mais nada!

16.

Não demorou nada! Cabrões!


Como não conseguiram apanhar-me pelo serviço, tentam espetar-me a faca de outra maneira!!!


Acabo de receber uma ordem de serviço lá de cima a dizer que a partir de agora é expressamente proibido fumar dentro das instalações, e cito: "As consequências que se afiguram desastrosas quiçá letais para a manutenção dos exemplares, apenas poderão ser travadas com o restauro da qualidade do ar, o que impedirá que todo e qualquer tipo de poluição penetre nos corredores" e mais blá, blá.


Filhos da pu...!


Não! Não me conseguem deitar abaixo! Eu já lhes digo! Não é permitido fumar, não é? Não querem deixar-me o meu único prazer, este que não faz mal a ninguém, eu, aqui, sózinho e abandonado, um quase enterrado vivo entre mortos de papel, entre gente que chega e me destrata mal olhando no meu rosto! Oh! Sorte! Oh! Penas!


(Chega... ainda estou influenciado pela última peça de teatro que aqui entrou...)


Deve de haver uma maneira de eu dar a volta a isto. Deve de haver uma forma de eu cumprir a ordem e poder continuar a usufruír do meu prazerzinho...

15.

Já cá tardavam...

São piores que moscas. Sempre de roda, a cheirarem o faro a merda. A ver se encontram merda. Deixa-os fuçar, não vão achar nada que eu sou escrupuloso no cumprimentos das funções que me foram atribuídas e não seríam uns merdas de uns auditores que me deitaríam a folha de serviço para o esterco. Não. Nem um respingo. Um odor.


Volta e meia lá aparecem eles. De surpresa, a ver se me apanham com as calças na mão.


Andaram por aqui dois dias. Sobe escadas, empoleirado nas estantes, traga-me isto, agora aquele, este exemplar é deste sector? Oh Guarda-Livros, não se importa, explique lá o que este livro está a fazer aqui?


Claro que eu pensei logo que o livro nunca fará o que os auditores fazem: sombra.


Nada mais.

Desarrumaram-me o estaminé, deixaram isto de pantanas e agora quem se lixa sou eu!


Para nada! Para nada! Não encontraram nada, nem podíam! Eu sigo o regulamento à risca!


Deve de haver uma maneira de os tramar... Tem de haver!

14.

Há alguns livros que me aborrecem de morte. Um tédio só, dão-me uma neura para vários dias, perco o apetite, canso-me.
Os dicionários.
Que seca!
Uma verdadeira estopada!
E encornar aquilo tudo? Debitar sinónimo a sinónimo, classificar por substantivos, adjectivos, verbos, feminino, masculino, latim o da raíz... BAH! Fazem-me perder a paciência até à raíz do cabelo.
(Ah! Não sei se já disse... ando a usar uma brilhantina que um fulano me aconselhou, um... deixa cá ver se me lembro do nome dele... Pois! É isto que eu dizía! Os dicionários dão-me cabo da cabeça!)
Não estou a dizer que são obra sem utilidade! Não, nada disso! Mas que me tiram o ar, tiram. E depois é um sobe e desce para os guardar, que o lugar deles é no topo das prateleiras, Secção de Linguistica e verdade verdadinha, a idade já me carrega as pernas e no final do dia quem se amola sou eu.
Bom, agora que já fiz uma paragem e fumei um cigarrinho para vos contar sobre mais esta desventura, vou continuar.
Deve de haver uma forma mais animada de encarar esta tarefa... Por exemplo se me arranjassem uma assistente... Ela subía, eu passava-lhe os livros cá de baixo... Lindo! Uma beleza olhar para o topo e saber o significado de levantar, erguer...ai, ai...

13.

Se há coisa que goste mesmo é de receber os livros que os autores autografaram previamente.

Ah! Como gosto!

Apreciar a assinatura, a dedicatória quase como uma chancela... alguns assinados na pressa, a mão a doer, os dedos a terem caimbras pela monotonia do acto, a repetição dos mesmos gestos.

Coitados.

Mal sabem que nunca os hão-de ler, deleitar-se com a letrinha a dizer Com Amizade, Um abraço sincero do... Tanto trabalho para nada. Não vendem. Não aparecem no lançamento. Lançam-se neste mundo ingrato pensando que lá porque os de casa e os parentes gostaram, todos vão a correr comprar... Uma desilusão.

A maioria aparece envergonhada; outros revoltados; muitos com uma carroça que nem vos conto, tentam afogar as mágoas, esquecer a noite em vão, à espera. À espera de Goudot.

Uns quantos veem em mim uma espécie de confessor. Um analista. Quase padre que os absolve do pecado da escrita mal parida.

Devía de haver uma compensação no meu salário por este acrescento que desempenho o melhor que sei. Afinal eu sou guarda-livros, o nome está mesmo a dizer, não é? Guarda-Livros. Não é Guarda-Confissões, Guarda-Aguenta.

12.

Que grande desgraça!
Caíu uma estante da secção de BD e anda tudo à solta!
Já consegui recuperar o Woody Hood Pecker mas o Spider continua por aí a colar fios de baba por tudo o que é caixote e prateleiras!
Agora imaginem o que é isto chegar aos ouvidos do Patronato...
Ou pior.
Se tivesse caído a estante da secção de História, sub-secção da II Grande Guerra... o "Mein Kampf", ai, ai... nem quero imaginar!
Que os tipos da BD são uns chatos para se agarrarem mas sempre me fazem rir... mas estes, este...
Deve de haver um sistema qualquer que comporte tudo o que é exemplar... ainda não percebi porque é que só eu é que não tenho direito a ter o serviço informatizado.

11.

Fim do mês é tempo de arquivo. Uma trabalheira. Poemas para aqui, ficção cientifica para lá, eróticos aqui (aqui, aqui!), cor-de-rosa para além...

Para ter tempo de fazer a selecção como deve de ser costumo pendurar a placa do "Volto já", mas estes gajos não querem saber de nada. Encostam o dedo na campainha e não desistem.

Há sempre os crónicos, os que acabaram o manuscrito durante a noite e mesmo à pele aí estão eles. É certinho. Já os conheço. São tipicos.
Chegam com aquele ar desesperado, grandes olheiras, a lingua castanha de tanto café, suspiram que se fartam mas o sinal que os trai é a ansiedade de se acharem os únicos no mundo a vir entregar a "sua" obra.
Mil desvelos, "veja lá", "cuidado, está aí muito trabalho", "sabe o que tem na mão?", então não sei! Esquecem-se que vivo todos os personagens de fio a pavio? Mesmo os rascas e que me dão brotoeja? E os cigarros? Dobro o consumo por causa da vivência a que alguns me sujeitam!

Devía de haver uma clausula no regulamento que impedisse estes atrasadinhos de aparecerem aqui no fim do mês... É que sou pau para toda a obra!