44.

Gustave Flaubert tinha razão: Cuidado com a tristeza, ela é um vício.


Quanto mais triste me sinto, mais embrulhado nesta sensação solitária de gostar da minha pena, é um vício sim, um amar-me nesta inconsolável profissão em que me empresto aos outros e fico sem vida de mim próprio.


Tenho pena de mim. Quem mais podería ter? Não há mais ninguém. Só personagens que se soltam de páginas que substituíram o mundo dos vivos num tempo em que o escritor (também ele) se abandonou ao acto egoísta de viver por outros.


Por vezes perco a vontade de respirar.


Mas a campainha toca e o meu dever de Guarda-Livros alerta-me para as obrigações profissionais. Deixo a auto-comiseração para mais tarde...


Devería o escritor ser tão carrasco? Devería de haver alguém que escrevesse sobre mim, alguém que entendesse estas crises existenciais e as levasse a sério, realisticamente, que guardar os livros dos outros é condenação eterna.

43.

Aprecio quase todos os géneros literários, desde que bem feitos, é a gosto que me enfio na pele de cada personagem e até o cansaço fica esquecido até o expediente fechar.


Mas há uma figura que estimo deveras: O detective privado dos policiais.


Gosto de tudo nele, a forma de andar, a imprescindível raincoat, o chapéu de feltro, os pés assentes no tampo da secretária, a sua parca alimentação à base de cafeína, as louras que lhe chegam às mãos lamuriando-se da infidelidade do esposo e lá para o meio do livro já estão caídas nos braços do detective privado.


Não é fantástico?


Levam umas valentes peras e nunca vão abaixo. E depois, muito cool, desvendam tudo na ponta do cigarro que fumam em rolos violeta. Até nisto me revejo!


Deve de haver uma forma de eu conseguir realizar esta personagem sem ser como trabalho... Mas que até a nível laboral saio sempre por cima, sempre!

42.

Bom! Nem tudo é mau!


O patrãozinho ligou a dizer que o processo daquela pespineta da menina poetisa ficou em águas-de-bacalhau, nada se provou, nem tentado nem consumado e assim sendo fica a minha folha de serviço continuadamente branca, branquinha da silva, limpissima!


Por outro lado, a rapariga não saíu lá muito bem vista... e o patrão está a pensar vetar-lhe a poesia por aqui. Se bem que com este enxovalho de querer dar o corpinho ao manifesto para recolher dividendos não lhe há-de chegar muita veia inspiradora para as poéticas...


É bem feita!


É para aprender a não se meter com o Guarda-Livros!


Eu no serviço sou inflexível, o trabalhinho acima de tudo! Nada me desvia do meu profissionalismo! (Chica-esperta!)


Devía de haver um castigo para estas figurinhas. Para saberem que não se mancha a honra de um Guarda-Livros. Moi-même!

41.

Chove copiosamente.


Neste dias gosto de me dedicar de corpo e alma à poesia. Gosto da tristeza que ela me provoca, dos frémitos de dor e saudade, sou o poeta. Sou o fingidor e eu também. Este, aquele e ainda o outro. Leve, levemente como quem chama por mim. Torno-me carinhosamente ridiculo como uma carta de amor.


Gosto de me vestir de poeta. Mas só nos dias em que chove a direito.


Devíam de haver mais dias de poeta, devíam de haver mais dias em que me encontro comigo como a chuva encontra a terra.

40.

Ela era bonita e burra. Demasiado bonita e também demasiado burra. Terminava as frases com um tá a pecebere? Fosse qual fosse a questão colocada. Olhava as estantes, a luz, o postigo, o cinzeiro (vazio, vazio!), o quadro eléctrico, o aquecedor e fazía hummmm. Uma coisa prolongada que parecía vir de lá de dentro.


Eu limitei-me a andar atrás dela (e bem que merecía a pena!), a segui-la, a responder sem grandes explicações às perguntas. Mesmo pecebendo-a.


Tenho a certeza que o patrão não sabía de nada disto.


Comisão de Higiene e Segurança no Trabalho.


Desencantam cada uma!


Diz que depois faz chegar o relatório a quem de direito. A quem? Não deve ser a mim... Isto é mais uma daquelas coisas que não serve para nada, estão-se lixando se tenho frio ou se a luz é suficiente. Insistem é na porcaria dos cigarros. A lei. Pois, já me tinhas dito, filha!


Devías era vir para aqui amochar comigo, alancar com os calhamaços escada acima e a levares com a freguesia... Devía-te passar num instantinho esse hummm.

39.

Fui chamado lá acima.


O patrão.

(Estava-se mesmo a ver...)


Mandou-me sentar. Nunca o tinha feito. Fiquei logo de pé atrás. Que tinha estado a analisar os núemros e medidas têm que ser tomadas rápido e com todo o rigor. Tornei-me seriamente apreensivo pelo seu tom de voz, não me olhava, só mexía na porcaria dos papéis e não saía dos rodeios até que...


Vou ter que lhe reduzir o salário!


Levei um soco no estomago! O QUÊ? Mas estamos a brincar?


É isso mesmo. Um corte, uma coisita quase de nada no salário, mais exactamente, o subsidio de almoço, embora continue a constar na folha de vencimento, já se sabe que os sacanas da Inspecção andam de olho em tudo! É preciso precaução, isto é coisa passageira, há que fazer sacrificios, todos o fazem, até ele (ele, patrão) já tinha começado a pôr em prática algumas medidas, tais como...


Esta parte não percebi. Ainda apurei o ouvido, afiei as orelhas mas foi absolutamente inteligível o que ele disse...


Então... E esses cortes, são para quando? É para já, no final do mês quando receber o envelope não se admire, já está avisado. É tudo, pode ir.


E já agora, continua a contar com o meu profissionalismo. Sim senhor. Com a minha assiduidade. Sim senhor. Com a minha disponibilidade. Sim senhor. E com a confiança, ou seja, bico calado.


Justiça, deve de haver por aí alguma... para mim e para este grande filho da p!

38.

Está tudo tão calmo que até mete medo...


Nada se passa, não entrou um único exemplar novo ou até mesmo uma reedição que seja para me animar e tirar-me deste marasmo.


Sinto-me completamente sózinho no mundo. Um frio terrível paraliza-me até o pensar e como não há nada para arquivar os movimentos estão limitados ao minimo. Como o aquecedor não dá para nada ando de cobertor pelas costas. Agora é que fazíam falta as peúgas da mulher do patrão... e estas luvitas são tão miseráveis que tenho os dedos encarquilhados.


Nem consigo fumar, só o posso fazer de postigo aberto e o frio está de rachar.


Mil e uma coisas passam-me pelo pensamento. Acho que comecei a ter visões, vejo sombras, vultos projectados nas prateleiras... Talvez sejam só as personagens que saíram das suas encadernações e vieram aquecer-se um bocado... Não sei, já não sei de nada.


Deve de haver alguém que se lembre de mim, que ache que isto não é maneira de viver para ninguém... que a loucura é capaz de me atingir.

37.

Ora então muito Bom Ano a todos os escritores, a todos os leitores, outros que nem uma coisa nem outra e muito particularmente a todos os Guarda-Livros deste Universo!
Mas o 2009 para mim entrou como acabou o 2008 e todos os outros que já lá vão.
Balanços.
Pois é, fazer o balanço do final de época é cá um osso!
E pior, mas muito pior do que fazê-lo é levar os resultados ao patrão... Ele não vai gostar nada. Fechámos o ano em défice e as perspectivas não se anunciam melhores.
Estou um pouco temeroso... Conhecem aquela máxima do Don't kill the messenger?
Com o meu patrão não adianta sequer pensá-la. Vai enfurecer-se a achar que a culpa de tão maus resultados é cá do rapaz. Receio pelas retaliações...
Deve de haver uma maneira de ele perceber que eu não meto prego nem estopa nestes assuntos dos livros, sou só Guarda-Livros, o nome já diz tudo.